domingo, 24 de junho de 2012

Me ensina a sentir?

        — Nina, como é que você faz esse arroz?
        — Sei lá. Normal. Como todo mundo faz.
        — Não. Seu arroz não é igual ao de ninguém. Tem um quê de diferente. Não sei explicar, mas tem.
        — Talvez seja essa "nata" de tomate por cima. Nem todo mundo faz assim, acho.
        — Eu já comi seu arroz antes. E não tinha tomate. Estava tão gostoso quanto esse. Tem algum outro segredo. E também tinha outra coisa por cima.
        — Cebola. Era cebola.
        — Hoje é tomate e da outra vez era cebola?
        — É. É uma confusão de influências, sabe?
        — Influências?
        — É. Minha avó sempre fazia com tomate por cima. A gente levantava a tampa da panela e via aquela camada de tomate por cima. Só depois de enfiar a colher é que aparecia o arroz. Era uma disputa para chegar à panela primeiro. O primeiro raspava um monte da "nata" de tomate. Era o melhor do arroz. E os outros ficavam reclamando: "Não é justo! É para enterrar a colher até o fundo da panela e puxar! Não vale raspar todo o tomate!"
        — E a cebola?
        — A cebola? Era minha mãe quem colocava. Acontecia a mesma coisa que acontecia na casa da vovó, só que a "nata" era de cebola. Na casa da mamãe, a disputa era pela cebola, sabe?
        — Hmmm. E você, como ficou?
        — Fiquei como?
        — Entre o tomate e a cebola.
        — Fiquei confusa.
        — Não tem um preferido?
        — Não.
        — Então, por que você não mistura? Deixa uma "nata" de tomate e cebola no seu arroz.
        — Não dá certo. Uma vez vi uma nutricionista falando na TV que, quando se tem um filho pequeno, deve-se dar cada alimento do prato separadamente para a criança aprender a diferenciar os sabores. Percebi que também fui acostumada assim. Preciso separar o tomate da cebola para poder sentir direitinho o sabor de cada um.
        — Me ensina a fazer esse arroz?
        — Você prefere com tomate ou cebola?
        — Tanto faz. Os dois são bons.
        — Vou te contar um segredo. Não sei cozinhar nada. Nada mesmo.
        — Como assim? E esse arroz?
        — Decorei como fazer de tanto ver. Minha avó e minha mãe, como tantas mães e avós, faziam arroz todo dia. A única coisa que faço na cozinha é esse arroz. O resto eu compro pronto para acompanhar.
        — Por que não compra tudo pronto logo de uma vez? Não é mais fácil?
        — Porque é uma receita de família. Uma não. Duas. Duas variações da mesma coisa. Herança. Da mãe e da avó. O que eu vou dizer para um filho sobre receitas de família quando ele crescer?
        — Então, me ensina a fazer o arroz. Pensando bem, você deve estar enjoada de só fazer arroz, né? Você bem que poderia me ensinar a fazer alguma outra coisa que não fosse na cozinha.
        — Que outra coisa?
        — Sei lá. Que outra coisa você sabe fazer?
        — Nada.
        — Nada?
        — Nada.
        — Desenhar? Jogar xadrez? Nadar?
        — Não sei fazer nada disso.
        — Pode ser outra coisa. Você deve saber fazer outra coisa. Qualquer coisa.
        — Não sei. Não mesmo. E a única coisa que eu sei fazer não dá para ensinar.
        — O que é?
        — Sentir.
        — Sentir?!
        — É.
        — Como assim?
        — Quando sinto um cheiro, sei dizer exatamente de que é. Pode testar com qualquer coisa.
        — Qualquer coisa mesmo?
        — Qualquer uma. Que eu conheça, é claro.
        — E o que mais você sabe sentir?
        — Sinto cada nota de uma música ressoando no meu corpo. E separo os instrumentos todos dentro da cabeça: baixo, guitarra, bateria... Já percebeu que cada pessoa dança acompanhando um dos instrumentos? Pode reparar.
        — Nunca reparei.
        — Pois é. Eu poderia ficar o dia todo falando de tudo o que eu consigo sentir com uma enorme precisão. Mas isso não serve para nada, né?
        — Claro que serve. Me ensina a sentir, então.
        — O que você quer aprender a sentir?
        — Gostei desse lance de sentir as notas e de separar o som. Quando escuto uma música, ouço apenas uma massa sonora. Não consigo separar os instrumentos na cabeça como você falou.
        — Tá. Deixa eu colocar uma música.
        — Hmmm, essa música parece ser ideal. Acho que vai ser fácil.
        — Feche os olhos, acompanhe o som mentalmente e...
        — Tô sentindo...
        — ?
        — ...cheiro de arroz queimado. Nina, você esqueceu o fogo do arroz aceso!!!!!



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