— Nina, como é que você faz esse arroz?
— Sei lá. Normal. Como todo mundo faz.
— Não. Seu arroz não é igual ao de ninguém. Tem um quê de diferente. Não sei explicar, mas tem.
— Talvez seja essa "nata" de tomate por cima. Nem todo mundo faz assim, acho.
— Eu já comi seu arroz antes. E não tinha tomate. Estava tão gostoso quanto esse. Tem algum outro segredo. E também tinha outra coisa por cima.
— Cebola. Era cebola.
— Hoje é tomate e da outra vez era cebola?
— É. É uma confusão de influências, sabe?
— Influências?
— É. Minha avó sempre fazia com tomate por cima. A gente levantava a tampa da panela e via aquela camada de tomate por cima. Só depois de enfiar a colher é que aparecia o arroz. Era uma disputa para chegar à panela primeiro. O primeiro raspava um monte da "nata" de tomate. Era o melhor do arroz. E os outros ficavam reclamando: "Não é justo! É para enterrar a colher até o fundo da panela e puxar! Não vale raspar todo o tomate!"
— E a cebola?
— A cebola? Era minha mãe quem colocava. Acontecia a mesma coisa que acontecia na casa da vovó, só que a "nata" era de cebola. Na casa da mamãe, a disputa era pela cebola, sabe?
— Hmmm. E você, como ficou?
— Fiquei como?
— Entre o tomate e a cebola.
— Fiquei confusa.
— Não tem um preferido?
— Não.
— Então, por que você não mistura? Deixa uma "nata" de tomate e cebola no seu arroz.
— Não dá certo. Uma vez vi uma nutricionista falando na TV que, quando se tem um filho pequeno, deve-se dar cada alimento do prato separadamente para a criança aprender a diferenciar os sabores. Percebi que também fui acostumada assim. Preciso separar o tomate da cebola para poder sentir direitinho o sabor de cada um.
— Me ensina a fazer esse arroz?
— Você prefere com tomate ou cebola?
— Tanto faz. Os dois são bons.
— Vou te contar um segredo. Não sei cozinhar nada. Nada mesmo.
— Como assim? E esse arroz?
— Decorei como fazer de tanto ver. Minha avó e minha mãe, como tantas mães e avós, faziam arroz todo dia. A única coisa que faço na cozinha é esse arroz. O resto eu compro pronto para acompanhar.
— Por que não compra tudo pronto logo de uma vez? Não é mais fácil?
— Porque é uma receita de família. Uma não. Duas. Duas variações da mesma coisa. Herança. Da mãe e da avó. O que eu vou dizer para um filho sobre receitas de família quando ele crescer?
— Então, me ensina a fazer o arroz. Pensando bem, você deve estar enjoada de só fazer arroz, né? Você bem que poderia me ensinar a fazer alguma outra coisa que não fosse na cozinha.
— Que outra coisa?
— Sei lá. Que outra coisa você sabe fazer?
— Nada.
— Nada?
— Nada.
— Desenhar? Jogar xadrez? Nadar?
— Não sei fazer nada disso.
— Pode ser outra coisa. Você deve saber fazer outra coisa. Qualquer coisa.
— Não sei. Não mesmo. E a única coisa que eu sei fazer não dá para ensinar.
— O que é?
— Sentir.
— Sentir?!
— É.
— Como assim?
— Quando sinto um cheiro, sei dizer exatamente de que é. Pode testar com qualquer coisa.
— Qualquer coisa mesmo?
— Qualquer uma. Que eu conheça, é claro.
— E o que mais você sabe sentir?
— Sinto cada nota de uma música ressoando no meu corpo. E separo os instrumentos todos dentro da cabeça: baixo, guitarra, bateria... Já percebeu que cada pessoa dança acompanhando um dos instrumentos? Pode reparar.
— Nunca reparei.
— Pois é. Eu poderia ficar o dia todo falando de tudo o que eu consigo sentir com uma enorme precisão. Mas isso não serve para nada, né?
— Claro que serve. Me ensina a sentir, então.
— O que você quer aprender a sentir?
— Gostei desse lance de sentir as notas e de separar o som. Quando escuto uma música, ouço apenas uma massa sonora. Não consigo separar os instrumentos na cabeça como você falou.
— Tá. Deixa eu colocar uma música.
— Hmmm, essa música parece ser ideal. Acho que vai ser fácil.
— Feche os olhos, acompanhe o som mentalmente e...
— Tô sentindo...
— ?
— ...cheiro de arroz queimado. Nina, você esqueceu o fogo do arroz aceso!!!!!
Link para essa postagem
Nenhum comentário:
Postar um comentário